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Lei Magnitsky não respeita Direito Internacional, mas é aplicada por hegemonia dos EUA

  • Foto do escritor: Neriel Lopez
    Neriel Lopez
  • 29 de set.
  • 9 min de leitura

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Os Estados Unidos impõem sanções a pessoas e empresas estrangeiras, fora do território americano, com base em normas que não foram adotadas por esses países. A prática não condiz com os fundamentos do Direito Penal Internacional, mas segue sendo aplicada porque eles detêm mecanismos que garantem a efetividade das penalidades, como os sistemas financeiros e de cartões de crédito.

Na última segunda-feira (22/9), os alvos da medida foram a advogada Viviane Barci de Moraes, mulher do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, e o Instituto Lex, entidade de estudos jurídicos pertencente à família.

A Lei Magnitsky foi criada para punir indivíduos que cometem graves violações de direitos humanos e corruptos contumazes. Dessa forma, sua imposição contra Alexandre e a esposa contraria os objetivos da norma, segundo o deputado democrata Jim McGovern, coautor da lei.

“O uso de sanções GloMag neste caso contraria a intenção e o propósito da Lei Global Magnitsky, comprometendo assim sua integridade e enfraquecendo-a como instrumento de responsabilização por abusos de direitos humanos”.

McGovern chama de “vergonhosa” a punição imposta ao ministro e ressalta que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) foi derrotado pelo presidente Lula (PT) em eleição chancelada por observadores internacionais, que não encontraram nenhum indício de fraude.

O democrata argumentou que o governo Trump, ao utilizar a Lei Magnitsky contra um magistrado brasileiro, dá credibilidade a alegações de Rússia e China de que a lei seria usada como arma de guerra.

“Ao disfarçar o favoritismo com a linguagem dos direitos humanos, a administração [Trump] prejudica a credibilidade dos Estados Unidos e sua capacidade de promover os direitos humanos no exterior”, disse.


Recado de Dino

Em agosto, o ministro do STF Flávio Dino decidiu que o Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram) não tem a obrigação de cumprir leis da Inglaterra, onde é alvo de ações judiciais que buscam indenizar brasileiros que foram vítimas de rompimentos de barragens e mais desastres naturais.

Na decisão, Dino fez pontuações que podem servir para desqualificar a aplicação da Lei Magnitsky, por exemplo, contra Alexandre. O ministro não citou a Magnitsky nominalmente, mas abordou indiretamente a aplicação da norma contra o colega.

“O Brasil tem sido alvo de diversas sanções e ameaças, que visam impor pensamentos a serem apenas ‘ratificados’ pelos órgãos que exercem a soberania nacional”, apontou o ministro. “Decisões judiciais estrangeiras só podem ser executadas no Brasil mediante a devida homologação, ou observância dos mecanismos de cooperação judiciária internacional”.

O magistrado ainda disse que as leis estrangeiras e diplomas semelhantes não alcançam pessoas naturais por atos em território brasileiro; relações jurídicas aqui celebradas; bens aqui situados, depositados, guardados; e empresas que aqui atuem.

Segundo Dino, a violação desses termos “constitui ofensa à soberania nacional, à ordem pública e aos bons costumes, portanto presume-se a ineficácia de tais leis, atos e sentenças emanadas de país estrangeiro”.

“Desse modo, ficam vedadas imposições, restrições de direitos ou instrumentos de coerção executados por pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País, bem como aquelas que tenham filial ou qualquer atividade profissional, comercial ou de intermediação no mercado brasileiro, decorrentes de determinações constantes em atos unilaterais estrangeiros”, destacou.


Exceções à territorialidade

Há exceções à regra da territorialidade, mencionada por Dino na decisão. Carmen Tiburcio, professora de Direito Internacional Privado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), aponta que a regra, no Brasil, é que as leis têm força mandamental, e as decisões judiciais, aplicação imediata e força mandatória.

Ela ressalta, porém, que isso não significa que leis e decisões judiciais nunca têm efeitos extraterritoriais. O artigo 7º do Código Penal estabelece situações em que crimes cometidos no exterior ficam sujeitos à lei brasileira. Entre eles, os praticados por brasileiros ou os contra a vida ou liberdade do presidente da República. E se alguém tiver domicílio no Brasil e fizer algum trabalho no exterior, será tributado pelo Imposto de Renda no país.

Peter Sester, professor da FGV Justiça, explica que há dois cenários diferentes. O primeiro trata das sanções que são executadas no território do país que determina a aplicação de uma penalidade (por exemplo, o confisco de bens) contra uma pessoa física ou jurídica sem vínculo direto (como residência, sede ou nacionalidade) com aquele país.

“Isso não é uma questão de extraterritorialidade stricto sensu. Um exemplo são as sanções da União Europeia no contexto da guerra da Ucrânia, como o confisco de barcos de luxo que entraram em um porto no território de um estado-membro da UE ou congelamento de contas em um banco da EU”, aponta Sester.

O segundo cenário trata das sanções que são executadas fora do território do país que as impõe. Nesse caso há extraterritorialidade stricto sensu e enforcement jurisdiction, ressalta o professor. A regra do Direito Internacional é que isso é proibido, a não ser que uma international customary law (norma consuetudinária internacional) ou uma convenção internacional estabeleça uma exceção. Essa disposição foi estabelecida pelo Permanent Court of International Justice no caso Lotus, em 1927.

“De acordo com os princípios estabelecidos no caso Lotus, extraterritorial prescriptive or adjudicative jurisdiction (jurisdição extraterritorial prescritiva ou adjudicativa) é permitida caso exista um vínculo suficiente entre a lei (prescriptive jurisdiction) ou a decisão do Judiciário (adjudicative jurisdiction) e o evento extraterritorial. O problema é que a decisão Lotus não esclareceu o que significa ‘vínculo suficiente’. Pelo contrário: a decisão determinou que os Estados têm bastante autonomia em definir o que significa ‘vínculo suficiente’”, destaca Sester.

Dessa maneira, uma empresa que viole o embargo imposto a um país pode ser punida pelo Estado que impôs a sanção, sob a alegação que a transação tem algum impacto econômico indesejado, detalha o docente da FGV Justiça.

Já Gustavo Ferraz de Campos Monaco, professor de Direito Internacional Privado da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que, à luz do Direito Internacional, não seria permitido que os EUA, por meio da Lei Magnitsky, impusessem sanções a pessoas e empresas de outros países, fora do território americano?

“Mas a questão é outra. São os mecanismos de efetividade das decisões. Com relação às operações financeiras de matiz global, tais mecanismos estão todos localizados em território estadunidense. E é isso que garante aos EUA instrumentos de coação sobre as instituições financeiras com as quais os apenados trabalhem”, explica.

Segundo Monaco, a aplicação de leis estrangeiras no território de outros países é possível nos casos de Direito Internacional Privado, mas somente quando as regras estabelecerem tal foro como competente para resolução de conflitos. No caso da Magnitsky, o Judiciário brasileiro não irá impor a lei. Porém, os EUA têm controle sobre os instrumentos de eficácia e eficiência da norma. E é isso que permite que países criem leis aplicáveis fora de seu território, conforme o professor.


Instrumento de pressão

O problema é que leis como a Magnitsky acabam servindo como instrumento de geopolítica para os EUA imporem suas visões e interesses comerciais sobre países que não concordaram em se submeter a essas normas.

Em sua coluna na ConJur, o jurista Lenio Streck, professor de Direito Constitucional da Universidade do Vale do Rio dos Sinos e da Universidade Estácio de Sá, afirma que, nos EUA, há uma alta deferência das cortes às decisões do Executivo quando o assunto envolve atos administrativos de aplicações de sanções a indivíduos estrangeiros e sem vinculação direta com o país.

“Segundo se pode compreender do contexto em que foram exaradas essas decisões, essa alta deferência torna difícil o questionamento dessas ordens executivas pela via judicial, o que indica a necessidade de ações do governo brasileiro para proteger os ministros do Supremo de interferências estrangeiras em suas decisões”, diz Lenio.

Ainda que os tribunais americanos costumem respeitar as decisões da Presidência, aponta, há precedentes importantes anulando atos administrativos praticados com excesso de autoridade, abuso de discricionariedade ou amparados em pretextos escusos, como o caso de Alexandre de Moraes.

“Não se está diante de uma pessoa acusada de corrupção e, muito menos, um ‘grave violador de direitos humanos’, mas sim de um magistrado que está atuando dentro dos limites impostos pelo Direito do Brasil, que, ao fim e ao cabo, decide colegiadamente. O que evidencia que os atos administrativos do Secretário do Tesouro (e do governo americano) incorrem em desvio de finalidade na aplicação”.

Não se trata e um problema jurídico, e sim de uma questão geopolítica, destaca o jurista. “Países poderosos não têm sua soberania ameaçada ou invadida. Porque têm forças para responder. Não é caso brasileiro”.

“Todavia, de acordo com o que se insiste em chamar de Direito Internacional, um país pode, sim, elaborar suas leis como a Magnitsky. Desde que não viole os outros acordos internacionais de que o país seja signatário. Como a Magnitsky, assim como o Foreign Corruption Practices Act, atinge a autonomia e soberania de outros países, o que é vedado pela carta das Nações Unidas, não poderiam ser promulgadas. Volta a valer, então, a inexistência do Direito Internacional”, avalia.


FCPA

Outra norma usada como instrumento para impor os interesses geopolíticos e comerciais dos EUA é o Foreign Corrupt Practices Act (FCPA, ou Lei de Práticas de Corrupção no Exterior, em tradução livre).

O FCPA foi editado em 1977. O objetivo original da norma era punir empresas americanas que subornassem funcionários públicos no exterior. A lei proíbe companhias dos EUA ou estrangeiras que tenham valores mobiliários negociados em bolsa no país, além de seus empregados, cidadãos americanos ou estrangeiros na nação, de pagar, prometer pagar ou autorizar pagamento de dinheiro ou objeto de valor para servidor de governo estrangeiro ou para obter negócios. Além disso, o FCPA abrange lavagem de dinheiro. Qualquer operação que tenha passado pelo sistema financeiro americano pode justificar a abertura de uma investigação no país.

Há ainda outros casos em que os EUA costumam justificar sua competência com base no FCPA, chamados por eles de the long arm of Justice (o longo braço da Justiça), conforme afirmou o especialista em Direito Internacional Jorge Nemr, então sócio do escritório Leite, Tosto e Barros Advogados, em entrevista à ConJur em 2016.

Com o passar do tempo, o FCPA passou a ser aplicado por autoridades americanas para ampliar a jurisdição dos Estados Unidos ao redor do mundo, “numa verdadeira guerra econômica e geopolítica subterrânea”, segundo apontaram os advogados Cristiano Zanin Martins (hoje ministro do Supremo Tribunal Federal) e Valeska T. Zanin Martins à ConJur em 2020.

O Brasil chegou a responder por cerca de 30% dos valores arrecadados pelo Tesouro americano com base no FCPA, conforme ressaltaram Zanin e Valeska, lembrando que há diversos outros procedimentos em curso envolvendo a lei e companhias brasileiras.

E agentes do Estado brasileiro ajudaram os EUA a punir empresas com base no FCPA. Zanin e Valeska apontaram que os procuradores da “lava jato” atuaram junto com autoridades americanas, como Federal Bureau of Investigation (FBI, equivalente à Polícia Federal); DoJ; Securities and Exchange Commission (SEC, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários); e Nacional Security Agency (NSA, equivalente à Agência Brasileira de Inteligência), na aplicação do FCPA contra empresas brasileiras e seus executivos.

Essa atuação, destacaram eles, levou executivos à prisão nos EUA e ao pagamento de “valores estratosféricos” a título de multa em favor do Tesouro americano. Também com o aval da “lava jato”, contaram os advogados, foram colocados monitores americanos em empresas brasileiras para acompanhar suas atividades. “Segundo os nossos estudos, algumas dessas empresas tiveram suas atividades comerciais arruinadas ou severamente prejudicadas. A Embraer, por exemplo, quase foi vendida para a Boeing após passar pelos procedimentos do FCPA.”

O DoJ, com base no FCPA, aplicou multas bilionárias a empresas brasileiras investigadas na “lava jato”. A Petrobras concordou em pagar US$ 1,78 bilhão em 2018 para encerrar as investigações. Já a Odebrecht aceitou pagar US$ 2,6 bilhões a Brasil, Suíça e EUA (que ficaram com US$ 93 milhões).

Em fevereiro, o presidente dos EUA, Donald Trump, assinou uma ordem executiva determinando à procuradora-geral, Pam Bondi, que suspenda as medidas tomadas sob o FCPA até que ela fixe novas diretrizes de aplicação. Todas as iniciativas atuais e passadas implementadas com base na norma serão revisadas.

“As empresas americanas são prejudicadas pela aplicação excessiva do FCPA porque são proibidas de se envolver em práticas comuns entre concorrentes internacionais, criando um campo de jogo desigual”, afirmou o informativo da Presidência dos EUA.


Mudanças no Direito Penal Econômico

A professora de Direito Penal da USP Helena Regina Lobo da Costa afirmou, no seminário “A nova era Trump e o Direito Penal Econômico”, promovido pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), que a aplicação do FCPA passou a se basear em critérios mais políticos e focados nos interesses nacionais americanos, como o combate a cartéis de drogas e a proteção de setores estratégicos. Segundo ela, isso pode desestimular programas de compliance nas empresas.

No mesmo evento, o também professor de Direito Penal da USP Renato de Mello Jorge Silveira opinou que, embora as políticas de Trump alterem aspectos pontuais (como a atuação do DoJ e os sistemas de compliance), não devem promover uma reforma duradoura no Direito Penal Econômico. Isso porque aparentam estar focadas no governo dele.

Por sua vez, o advogado Fábio Antônio Tavares, doutor em Direito Penal pela USP, declarou à ConJur que a nova gestão Trump está abandonando o soft power e adotando uma postura de “inimizade” com outros países. A medida pode ser o primeiro passo para o rompimento do processo de globalização, de acordo com Tavares.

As consequências disso no Direito brasileiro não seriam imediatas, avalia, pois processos legislativos são lentos. Contudo, algumas áreas poderiam ser afetadas mais rapidamente. No Direito Penal Econômico, as políticas dos EUA podem influenciar crimes que dependem de atos administrativos para sua complementação, como leis ambientais e de evasão de divisas.

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